segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O Relato Inédito dos Sobreviventes dos Andes

Quatro décadas depois, e pela primeira vez, os 16 uruguaios que saíram vivos de um acidente aéreo contam como enfrentaram 72 dias na neve - e lembram o desespero e a dor de se verem obrigados a praticar o canibalismo


VOLTA À VIDA
Cena do resgate dos 16 jovens em dezembro de 1972, nos Andes

O recém-lançado livro “A Sociedade da Neve” (Companhia das Letras), do escritor uruguaio Pablo Vierci, reúne os relatos inéditos e pessoais dos 16 sobreviventes da queda de um avião da Força Aérea do Uruguai, em 1972, numa remota região dos Andes. Estavam a bordo 45 pessoas que viajavam de Montevidéu para Santiago, no Chile, entre elas um time de jogadores de rúgbi. Havia cinco tripulantes. A aeronave chocou-se com os Andes e caiu. Dezesseis pessoas morreram na hora e, dos 29 sobreviventes, 13 foram morrendo ao longo dos 72 dias em que ficaram isolados na montanha. O grupo que conseguiu manter-se vivo o fez alimentando-se da carne de seus companheiros mortos. O fatídico episódio foi retratado em documentário, no cinema (“Vivos”, de Frank Marshall) e na literatura (“Os Sobreviventes – A Tragédia dos Andes”, do inglês Piers Paul Reed). Essa é, no entanto, a primeira vez que todos os 16 sobreviventes concordam em abrir suas tristes e dolorosas recordações. Por isso, a obra agora lançada é a mais completa de todas.

DESTINO
Foto tirada no avião pouco antes do acidente (acima). 
Abaixo, sobreviventes na fuselagem da aeronave

O autor revela que, após o resgate, autoridades do governo uruguaio aconselharam os jovens a não contar como tinham sobrevivido, “que a verdade, se pública, os assombraria para sempre”. Na época, Nando Parrado e Roberto Canessa, os expedicionários que conseguiram atravessar os Andes e pedir socorro a um montanhista, se negaram a esconder os fatos. Os relatos também detalham a rotina do grupo e sua estratégia de sobrevivência. Os integrantes dessa “sociedade da neve” – como eles se autodenominaram – concordaram em explicar como lidaram com o maior tabu envolvido no desastre: a ingestão de carne humana. A decisão foi tomada após o décimo dia do acidente, quando eles ouviram no rádio (que funcionou durante algum tempo) a notícia de que o resgate havia sido encerrado. O livro revela como dois deles, estudantes de medicina, tomaram a frente dessa iniciativa e, com os conhecimentos que tinham, tentaram prover a todos com os nutrientes mínimos. Entre os agonizantes e os menos famélicos que ainda conseguiam se mover e falar criou-se um “pacto de amor e solidariedade”: os que sabiam que a morte era questão de minutos incentivavam os ainda vivos a se servirem deles. Era como se houvesse um “te perdoo” antecipado. Isso, no entanto, em nada aliviava a dor e o desespero daquele que iria, para todo o sempre, levar consigo esse ato extremo.


RELATO HISTÓRICO 
Livro reúne depoimentos inéditos dos sobreviventes, entre eles Gustavo Zerbino, Adolfo Strauch, Moncho Sabella e Roberto Canessa (abaixo), que voltaram ao local em 2006 em homenagem aos companheiros mortos


Eles constituíram uma comunidade em estado de necessidade, única condição jurídica em que uma ação entendida pela sociedade como criminosa deixa de ser assim considerada. Os 16 sobreviventes retornaram ao local do desastre em 2006 num ato de oração e gratidão aos companheiros que morreram. A leitura de seus depoimentos hoje traduz, com o inevitável distanciamento emocional que o tempo a tudo empresta, somente um esforço hercúleo pela vida de quem há 38 anos precisou duelar com as próprias convicções morais, desafiadas pela iminência da morte na natureza selvagem onde se encontrava.
 

Confira capítulo do livro "A Sociedade da Neve"
1. Março de 2006: voltar à montanha
Subir até a geleira no Vale de las Lágrimas em março de 2006, onde está sepultada a fuselagem do F571 que caiu no sopé das serras de San Hilario, entre os vulcões Tinguiririca e Sosneado, é uma experiência arriscada.

Implica um percurso longo, uma subida vagarosa de dois dias a cavalo em trilhas improvisadas, com menos de meio metro de largura, o precipício sempre ao lado, numa cordilheira cujas paisagens e alturas mudam continuamente, mas onde a vertigem do risco iminente está sempre presente. Avança-se devagar, passo a passo, seja na montanha ou quando se atravessam as correntes impetuosas de água gelada que descem da cordilheira arrastando tudo no caminho. Parecem querer levar até mesmo as mulas e os cavalos, que cambaleiam mas não caem, firmando os cascos entre as pedras no fundo antes de dar o passo seguinte. Alguns cavaleiros avançam de olhos vendados para evitar os sobressaltos, confiando no instinto dos animais.

A cada trecho surge uma imagem ou algum imprevisto que faz você tremer. Tempestades de neve e ventos irrompem subitamente. Uma mula desliza barranco abaixo por vários metros, esperneando e levantando tanta poeira que fica impossível observar o desenlace, até que consegue firmar os cascos numa saliência da descida, com o cavaleiro curvado e agarrado à crina. Um cavalo tropeça, apoia um joelho na trilha e fica se equilibrando no ar com as patas traseiras sobre o precipício. Uma mula de carga se assusta com a ventania e sai correndo em meio às rochas, galopando montanha abaixo, largando sua carga pelo caminho, enquanto um tropeiro dispara atrás dela a galope. Os códigos já estão se alterando; a vertigem integra a paisagem. O grupo se aproxima da pré-história.

Dois dias depois, quando se chega ao Vale de las Lágrimas, a quase 4 mil metros de altitude, no centro da cordilheira dos Andes, na fronteira entre o Chile e a Argentina, o panorama é grandioso e aterrador. Faz lembrar um anfiteatro monumental: ao centro, sobre um promontório de rochas, há uma cruz de ferro onde estão enterrados os restos dos mortos no acidente. Ao sul se divisa uma sucessão infindável de montanhas e picos que vão até o Cabo de Hornos, no fim do continente. Ao norte, uma paisagem semelhante se estende até o Panamá, desdobrando seus 7240 quilômetros de extensão e constituindo um maciço montanhoso mais longo que o Himalaia; a oeste a visão se choca com um paredão de rochas e gelo de 5180 metros de altura, a serra de San Hilario, tão imponente que impede qualquer tentativa de se imaginar o horizonte. Para trás, a leste, retorna-se à Argentina, de onde veio o grupo a cavalo. Os infindáveis picos nevados culminam, na distância enevoada ao leste, no mais alto de todos: o vulcão Sosneado, de 6 mil metros de altura. Nessa paisagem de fim de mundo reina um silêncio inorgânico, interrompido de vez em quando pela violência do vento e o rangido da geleira.

É necessário deixar os cavalos, que precisam descer mil metros antes que o sol se ponha entre as montanhas para não morrerem congelados. Depois o grupo tem de caminhar mais oitocentos metros a oeste da cruz de ferro até o local exato onde a fuselagem do Fairchild está soterrada, no meio da geleira. Falta oxigênio, cada passo exige um esforço maior que o anterior. Náusea, confusão, dor de cabeça, o mal da altitude começa a se insinuar no corpo dos menos acostumados.

Quatro sobreviventes do acidente de 1972 fazem parte do grupo: Roberto Canessa, Gustavo Zerbino, Adolfo Strauch e Ramón “Moncho” Sabella. Acompanha-os também Juan Pedro Nicola, cujos pais faleceram no acidente. Como todos do grupo, ele traz o filho, para que conheça a sepultura onde descansam os restos de seus avós e dos outros que nunca mais voltaram. O filho observa o pai, que está absorto, o olhar perdido nas cinco agulhas de pedra com que o avião se chocou.

Quando a geleira fica mais próxima, e o paredão de neve da serra de San Hilario tem suas dimensões aumentadas, os integrantes do grupo precisam se amarrar uns aos outros e colocar crampons nas solas das botas antes de continuar a subida. A geleira, com a fuselagem bem no centro, está logo ali, atravessada de lado a lado por gretas de vinte a trinta metros de profundidade, dissimuladas por finas camadas de gelo. Três montanhistas profissionais vão à frente, sondando o terreno com suas piquetas e bastões. Alguns metros atrás seguem os quatro sobreviventes.

A paisagem que Gustavo Zerbino viu no dia 13 de outubro de 1972, às 15h35, momentos depois do acidente, quando a fuselagem destroçada encalhou no meio da geleira depois de deslizar a uma velocidade estonteante, ziguezagueando, chocando-se contra os conjuntos rochosos que surgem em meio à ladeira de neve, pouco mudou nesses 34 anos. A primeira coisa que ele viu, ao sul, foram as encostas abruptas cobertas de neve e coroadas no alto com as pontas de pedra observadas poucos momentos antes por Juan Pedro Nicola. As mais altas são as dos extremos, e foi contra uma dessas que se chocou a asa esquerda do avião, e seu ventre com as do meio, quando se deslocava com os motores roncando ao máximo, numa tentativa desesperada de evitar uma colisão que àquela altura, com a direção já totalmente perdida, era inevitável. Na direção do oeste, observado do ponto onde se encontra a fuselagem, o paredão de rochas cobertas de neve parece incrustado em posição vertical, humanamente inalcançável, a não ser por uma façanha acima de qualquer lógica, ou a menos que se esteja vivendo em uma sociedade desconhecida.

No dia 13 de outubro de 1972, às 15h37, Gustavo Zerbino, com dezenove anos de idade, pertencente ao grupo dos mais novos, vivenciava o mesmo que agora. Sentia falta de ar, não tinha forças, era assolado por dor de cabeça e estava muito confuso. Saiu ileso, mas precisava ajudar o amigo Roberto Canessa, da mesma idade, a escapar da armadilha onde caíra imobilizado debaixo de dois assentos arrancados inteiros pelo impacto que o deixaram preso entre ferros cortantes e pontiagudos. Imediatamente, os dois começam a retirar os assentos que prendem os demais, feridos ou ilesos. Para remover alguns cadáveres presos aos ferros retorcidos e aos destroços da fuselagem, precisam amarrá-los pelos pés usando os cintos de segurança e arrastá-los de quatro até a neve, para deixá-los ali sem mais, de bruços, a três metros do desastre.

Gustavo corre com determinação para ajudar no que pode. Não há tempo para pensar, apenas para colaborar com Roberto, que enquanto cuida de um ferido examina o pulso de um moribundo, momentos antes de improvisar um torniquete de emergência para conter o sangramento de Fernando Vásquez, que teve uma perna ferida pela hélice da asa direita que se soltou e avançou na direção do aparelho. Logo depois ele retorce a tíbia quebrada de Álvaro Mangino, encaixando-a no lugar e afastando-o do caminho: já foi atendido. Agora é a vez de outro, um companheiro emaranhado entre ferros, tremendo, com uma ferida na barriga, que logo se ergue para mostrar a Gustavo o tubo de metal cravado em suas entranhas.

— Não está doendo. Só sinto frio — diz Enrique Platero.

Hoje está tudo intacto. Como se o tempo tivesse congelado. Não há ferrugem nos restos do avião espalhados pelo local. Na asa esquerda, partida ao meio exatamente onde ficava a hélice, brilham com nitidez as velhas inscrições, o lugar de fabricação, a data, as instruções técnicas. O céu se fecha de repente e o grupo decide voltar oitocentos metros até o promontório de pedra onde está a cruz de ferro, ao lado da qual se montaram duas barracas especiais para a montanha.
Nuvens escuras avançam ameaçadoras, anunciando o vento e as tempestades de neve que logo fazem as barracas sacolejarem como se fossem arrancá-las do chão. Adolfo Strauch, que em 1972 pertencia ao grupo dos mais velhos, com 24 anos, anuncia a iminência de uma avalanche. Observa com atenção, e logo depois de fazer sua advertência ele mostra para a filha, Alejandra, como se produz um gigantesco desprendimento de neve acumulada no grande paredão a oeste, que provoca à sua passagem um forte estrondo e gera um rastro de vapor. Mas agora eles estão a salvo, a oitocentos metros de onde se encontram os destroços do avião de 72.
De pé junto à cruz de ferro, com o braço sobre o ombro de Roberto Canessa, Gustavo Zerbino vibra como se estivesse vivendo um presente contínuo. Na noite anterior, no acampamento-base de El Barroso, numa barraca de montanha que dividiu com um de seus filhos, no meio do caminho para o Vale de las Lágrimas, Gustavo não conseguiu dormir, assolado por náuseas e pesadelos. Ao amanhecer, ele monta seu cavalo e sobe em silêncio, isolando-se no tempo. Quando consegue enxergar o Vale de las Lágrimas, já está a bordo do F571. Seu relato, agora, se mescla com suspiros, intercala-se com recordações tão vivas que ele chega a sentir que está dando um passo atrás, como em 1972, para se afastar dos destroços fantasmagóricos do avião partido.
No instante em que a aeronave se chocava com a agulha de pedra, às 15h30, depois de despencar por uma coluna de vácuo ilimitada, Gustavo livrou-se inconscientemente do cinto de segurança e ficou de pé no corredor, segurando com toda força os suportes metálicos que delimitavam os bagageiros, para não voar com o choque. Sentiu o impacto, e logo depois os assobios do vento gelado e da neve que castigavam sua cabeça, as costas e as pernas, e contou os segundos intermináveis que o corpo partido do avião levava patinando sobre o gelo até parar abruptamente, esmagando assentos e pessoas contra o compartimento de bagagens e o dos pilotos.
Roberto Canessa sente o impacto da asa contra as rochas e agarra a poltrona à sua frente com todas as forças. Surgem em sua mente imagens soltas, impetuosas e confusas, que o encaminham a um único desenlace: ele está protagonizando um acidente aéreo na cordilheira dos Andes. A qualquer momento ele se espatifará contra a montanha e conhecerá o que se esconde do outro lado da vida.[Fonte: IstoÉ]

O Desencanto com o Brasil

Um estudo inédito revela o que os brasileiros pensam do País: um lugar desonesto, violento e ruim para se viver

Amauri Segalla (asegalla@istoe.com.br) e Paula Rocha


Se o Brasil fosse uma pessoa, como ela seria? Alegre? Confiável? Distinta? Para uma parcela considerável da população, nenhum desses atributos traduz a verdadeira alma brasileira. Se o Brasil fosse alguém de carne e osso, a principal característica, aquela que se vê logo de cara, seria a desonestidade. Um estudo inédito realizado pela consultoria BrandAnalytics, empresa ligada à Millward Brown Optimor, um dos maiores grupos de pesquisa do mundo, revela o que os brasileiros pensam do País. Obtidos com exclusividade por ISTOÉ, os resultados são espantosos. Os entrevistados receberam uma lista com 24 palavras e tiveram que apontar quatro delas que definissem com exatidão a nação onde vivem. Metade das pessoas declarou que a palavra “desonesto” descreve a personalidade nacional. E mais: apenas 18% das pessoas afirmaram que o Brasil é o lugar ideal para viver, praticamente o mesmo percentual (17%) que apontou o Japão como o país preferido. Trata-se do índice mais baixo entre quatro nações pesquisadas. Segundo o estudo, 52% dos americanos, 30% dos ingleses – pessimistas por natureza, lembre-se – e 26% dos chineses escolheram seu próprio país como o lugar perfeito para viver. Não é preciso muito esforço para entender o que a pesquisa evidencia. Os brasileiros estão, afinal, desencantados. “O levantamento mostra um índice de insatisfação surpreendente”, diz Isa Telles, associada da BrandAnalytics e coordenadora do estudo. A mesma descrença é confirmada pela pesquisa ISTOÉ/Sensus, tema da reportagem de capa desta edição. Neste caso, 50,2% dos brasileiros não consideram que o País está no rumo certo.


O que explica tanta desilusão? Basta dar uma espiada no noticiário para conhecer a incivilidade que permeia a vida de cada um de nós. Em São Paulo, alguém esquarteja o corpo de um motorista de ônibus e espalha partes dele pela cidade. No Rio, amarram um negro num poste e o espancam. Em Brasília, presos graúdos passam o tempo vendo jogos de futebol em tevês de plasma, enquanto no resto do País os cárceres são depósitos humanos degradantes. Em Belo Horizonte, hospitais públicos recusam atendimento a uma criança à beira da morte. No Nordeste, faltam professores. Em quase todo o Brasil há escassez de água, e os governos, sejam eles de qualquer cor partidária, atribuem a culpa sempre aos outros, sem jamais assumir responsabilidades. Por onde se anda as pessoas reclamam do preço de tudo o que se consome, do tomate na feira, do iPhone na loja da Apple, da passagem de ônibus, do carro esportivo. A economia não anda. As obras da Copa não saíram como o prometido. Os políticos querem o poder apenas pelo poder. O trânsito é horrível. A violência bate à nossa porta. Como ser feliz em um lugar assim? “Os resultados da pesquisa demonstram que grande parte da população não confia nem no País nem no seu semelhante”, diz Dulce Critelli, professora de filosofia da PUC de São Paulo. “É a representação concreta da ideia de que é preciso se defender não só dos outros, mas também de seus governantes.”


Talvez isso explique por que cada vez mais brasileiros achem que a melhor saída é o aeroporto internacional. Moradores do Rio de Janeiro, o publicitário Pedro Henrique Ramos, 31 anos, e a produtora cultural Liana Saldanha, também 31, estão aprontando as malas para mudar para Portugal, em julho. Na terra dos antepassados, acreditam, terão melhores condições para criar os futuros filhos. “Comparo a vida de meus amigos que moram em Portugal com a dos que vivem no Brasil e vejo que lá fora há mais perspectivas”, diz o publicitário. “Aqui não temos serviços públicos decentes nem escola e hospitais.” O que impressiona é que, profissionais de certo sucesso no Brasil, eles vão largar tudo para se aventurar mundo afora. Mesmo diante das incertezas de lá, acham que vale a pena fugir das certezas desagradáveis daqui.


Se você nunca foi enganado, pergunte a um parente ou amigo se já sofreu algum golpe e a resposta provavelmente será sim. As mazelas nacionais estão aí, em qualquer área ou atividade, tão visíveis quanto um assalto à luz do dia. A secretária Daiane Alves de Lima, 20 anos, foi convencida a pagar R$ 80 – sim, apenas isso – por mês para comprar a casa própria. Era uma mentira, um golpe deslavado. “Não desconfiei de nada”, diz. “Só quando compareci a uma reunião do projeto é que passei a questionar a validade dele.” Daiane perdeu dinheiro e pediu a ajuda do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor do Sistema Financeiro para checar se deveria continuar no projeto. Na saúde, os golpes se sucedem. A securitária Luciane de Paula e Silva, 41 anos, decidiu fazer, em abril de 2013, uma cirurgia para colocação de um balão intragástrico em uma clínica particular. Pagou R$ 12.712 pelo serviço. Um dia antes da operação, foi informada que ela havia sido cancelada. “Naquele momento, decidi desistir da cirurgia, pois perdi a confiança na clínica”, diz ela. O que Luciane não sabia é que ali começaria uma batalha que se arrasta até hoje. “Fiz um acordo com a clínica em que eles me devolveriam parte do dinheiro da cirurgia”, conta. “Para o meu espanto, os cheques da clínica voltaram, pois não tinham fundos.”


A pesquisa da BrandAnalytics confirma o que outros estudos já sugeriram: o descrédito profundo nas instituições, quaisquer que sejam elas. Segundo o levantamento, 81% dos entrevistados disseram que, para realizar seus sonhos, dependem essencialmente de esforços individuais. Só 13% responderam que precisam do suporte do governo. João Bico de Souza, 47 anos, é dono da Tecnolamp, uma empresa de iluminação com 40 funcionários diretos e 400 colaboradores temporários. “Abrir a empresa foi uma dificuldade”, diz. “Foram pelo menos dois meses de protocolos e burocracias.” João é o que se pode chamar de empreendedor nato. Filho de operário e de dona de casa, começou a trabalhar aos 15 anos, como balconista. Aos 22, já era empresário. O que o Brasil ofereceu para que seguisse em frente? Pouca coisa. “Falta apoio ou retorno do governo”, afirma. Tudo o que conseguiu, assegura ele, foi graças ao seu brutal esforço.


No clássico “Raízes do Brasil”, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, ao falar do homem cordial como uma marca indestrutível do caráter brasileiro (cordial não quer dizer para ele bondoso, mas retrata principalmente os que agem movidos pela emoção e não pela razão), desdobra-se também sobre o que chama de “personalismo” do cidadão brasileiro. No Brasil, diz Holanda, as pessoas cultuam o mérito pessoal (é o popular “cada um por si”), em vez do trabalho coletivo. O individualismo exacerbado se reflete, na análise do historiador, em organizações sociais e governos frágeis. “A nossa pesquisa revela que o brasileiro não tem uma visão de País”, diz Isa Telles, da BrandAnalytics. Seria isso resultado da conjuntura ou de um processo histórico? Provavelmente, as duas coisas. Se o individualismo contribuiu para a formação do que se pode chamar de psique brasileira, nos dias atuais ganhou alento graças ao desgosto com os rumos do País.


O grau de insatisfação dos brasileiros começou a ser escancarado em julho do ano passado, quando milhares de pessoas foram às ruas gritar contra as coisas erradas do País. Mas é um equívoco dizer que tudo ficou ruim de repente. De certo modo, o desencanto tem a ver com o próprio despertar dos brasileiros. É inegável que o Brasil avançou em muitas áreas nos últimos anos. A miséria diminuiu, a classe C teve acesso a bens como jamais tivera, a renda dos trabalhadores aumentou. Mas será apenas isso que buscamos? Com o avanço da economia, os brasileiros passaram a conhecer outras realidades. Viajaram, foram morar fora e com a internet tiveram maior acesso à informação. Descobriram, enfim, que há muitos mundos por aí – e realidades mais amigáveis que a nossa. O economista alemão Albert Hirschman desenvolveu uma teoria psicológica que explica a baixa tolerância das pessoas com o seu próprio destino quando se deparam com outro melhor. Ele chamou isso de “efeito túnel.” Se você está num congestionamento e a pista ao lado começa a andar, logo se enche de esperança e imagina que seu carro vai se movimentar também. Se a expectativa é frustrada, você fica furioso: “Por que eu não estou na outra pista?”




Falar mal do Brasil é um dos esportes preferidos da nação. Sempre foi assim. Sobre o País, o jurista, político e escritor Ruy Barbosa disse o seguinte lá no século XIX: “De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar diante da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” O que Barbosa disse não é muito diferente do sentimento de desencanto revelado pelos brasileiros na pesquisa da BrandAnalytics. “Se para a corrupção não há punição, a sociedade acaba se acostumando com as transgressões diárias das leis”, diz o economista Gil Castello Brasil, da Ong Contas Abertas. “Mudar essa cultura depende de um longo processo de educação. Nesse sentido, mostrar-se insatisfeito e indignado é bastante positivo.” O cientista político Fernando Weltman, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, acha que o resultado do estudo expõe a baixa autoestima do brasileiro, consagrada por Nelson Rodrigues na expressão “complexo de vira-latas.” “As características apontadas na pesquisa reforçam o estereótipo de que os brasileiros são simpáticos e charmosos, mas podem te passar a perna”, diz Weltman.


Isso realmente corresponde à realidade? Olhe para o lado e pense bem: a maioria das pessoas de seu convívio é desonesta? Elas querem levar vantagem sobre você? Não teria sido a impressão generalizada de desonestidade apontada na pesquisa um reflexo da má imagem que temos de nossos governantes? Não seria resultado dos índices chocantes de violência? Segundo a BrandAnalytics, hoje a maior preocupação dos brasileiros diz respeito justamente à segurança – segundo a ONU, 11 das 30 cidades mais violentas do mundo são brasileiras. É desnecessário dizer que, por mais que o Brasil tenha alimentado uma lamentável escola do crime nos últimos anos, as pessoas de bem, claro, representam larga maioria. O interessante da pesquisa é que os brasileiros julgam o Brasil um país desonesto, mas avaliam a si mesmos de maneira positiva. “É natural atribuir a si qualidades, mas achar que os outros não as têm”, diz Weltman, da FGV. Se metade dos entrevistados acredita que a principal característica do País é a desonestidade, 58% se dizem dignos de confiança. Ou seja, o meu vizinho é mau, mas eu sou bacana. No fundo, o que a pesquisa revela é que o Brasil tem um milhão de problemas para resolver e é só com a indignação – e o desencanto – que dá para sonhar com um país verdadeiramente melhor. [Fonte: IstoÉ]

Foto: Felipe Varanda, Pedro Dias, João Castellano/Ag. Istoé, Pablo Jacob / Agência O Globo; MARCOS BIZZOTTO; Rogério Cassimiro/Folha Imagem.