quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Cultura

 A cultura é parte do que somos: nela está o que regula nossa convivência e nossa comunicação em sociedade.



Até mesmo a nossa forma de vestir está ligada à nossa cultura

Ao tratar do conceito de cultura, a Sociologia e a Antropologia, se ocupam de compreender os aspectos aprendidos que o ser humano, em contato social, adquire ao longo de sua convivência. Esses aspectos, compartilhados entre os indivíduos que fazem parte deste grupo de convívio específico, refletem especificamente a realidade social desses sujeitos. Características como a linguagem, modo de se vestir em ocasiões específicas são algumas características que podem ser determinadas por uma cultura que acaba por ter como função possibilitar a cooperação e a comunicação entre aqueles que dela fazem parte.

A cultura possui tanto aspectos tangíveis - objetos ou símbolos que fazem parte do seu contexto – quanto intangíveis - ideias, normas que regulam o comportamento, formas de religiosidade. Esses aspectos constroem a realidade social dividida por aqueles que a integram, dando forma a relações e estabelecendo valores e normas.

Esses valores são características que são consideradas desejáveis ou indesejáveis no comportamento dos indivíduos que fazem parte de uma cultura, como por exemplo o princípio da honestidade que é visto como característica extremamente desejável em nossa sociedade. As normas são um conjunto de regras formadas a partir dos valores de uma cultura, que servem para regular o comportamento daqueles que dela fazem parte. O valor do princípio da honestidade faz com que a desonestidade seja condenada dentro dos limites convencionados pelos integrantes dessa cultura, compelindo os demais integrantes a agir dentro do que é estipulado como “honesto”.

Cultura e diferença

As normas e os valores possuem grandes variações nas diferentes culturas que observamos. Em algumas culturas, como no Japão, o valor da educação é tão forte que falhar em exames escolares é visto como uma vergonha tremenda para a família do estudante. Existe, então, a norma de que estudar e ter bom desempenho acadêmico é uma das mais importantes tarefas de um jovem japonês e a pressão social que esse valor exerce sobre ele é tão forte que há um grande número de suicídios relacionados a falhas escolares. Para nós, no entanto, a ideia do suicídio motivado por uma falha escolar parece ser loucura.

Mesmo dentro de uma mesma sociedade podem existir divergências culturais. Alguns grupos, ou pessoas, podem ter fortes valores baseados em crenças religiosas, enquanto outras prefiram a lógica do progresso científico para compreender o mundo. A diversidade cultural é um fato em nossa realidade globalizada, onde o contato entre o que consideramos familiar e o que consideramos estranho é comum. Ideias diferentes, comportamento, contato com línguas estrangeiras ou com a culinária de outras culturas tornou-se tão corriqueiro em nosso dia a dia que mal paramos para pensar no impacto que sofremos diariamente, seja na adoção de expressões de línguas estrangeiras ou na incorporação de alimentos exóticos em nossa rotina alimentar.

Etnocentrismo

O etnocentrismo trata-se de uma avaliação pautada em juízos de valor daquilo que é considerado diferente. Por exemplo, enquanto alguns animais como escorpiões e cães não fazem parte da cultura alimentar do brasileiro, em alguns países asiáticos estes animais são preparados como alimentos, sendo vendidos na rua da mesma forma como estamos habituados aqui a comer um pastel ou pipocas.

Assim, o que aqui é exótico, lá não necessariamente o é. Outro exemplo, para além da comida, é a vestimenta, pois, tomando como base o costume do homem urbano de qualquer grande centro brasileiro, certamente a pouca vestimenta dos índios e as roupas típicas dos escoceses – o chamado kilt – são vistas com estranheza. Da mesma forma, um estrangeiro, ao chegar ao Brasil, vindo de um país qualquer com muita formalidade e impessoalidade no trato, pode, ao ser recepcionado, estranhar a cordialidade e a simpatia com que possivelmente será tratado, mesmo sem ser conhecido.

Estes são apenas alguns dentre tantos outros exemplos que ilustram as diferenças culturais nos mais diversos aspectos.

O ponto alto da questão não está apenas em se constatar as diferenças, mas sim em aprender a lidar com elas. Dessa forma, no momento de um choque cultural entre os indivíduos, pode-se dizer que cada um considera sua cultura como mais sofisticada do que as culturas dos demais. Aliás, esta foi a lógica que norteou as ações de estratégia geopolítica das nações dentre as quais nasceu o capitalismo como modo de produção. Esses países consideravam a ampliação da produção em escala e o desenvolvimento do comércio, da ciência e, dessa forma, a adoção do modo de vida do europeu como “homem civilizado”, fatores necessários e urgentes. Logo, caberia a este último a função de civilizar o mundo, argumento pelo qual se defendeu o neocolonialismo como forma de dominação de regiões como a África.

Tomar conhecimento do outro sem aceitar sua lógica de pensamento e de seus hábitos acaba por gerar uma visão etnocêntrica e preconceituosa, o que pode até mesmo se desdobrar em conflitos diretos. O etnocentrismo está, certamente, entre as principais causas da intolerância internacional e da xenofobia (preconceito contra estrangeiros ou pessoas oriundas de outras origens). Basta pensarmos nas relações entre norte-americanos e latinos (principalmente mexicanos) imigrantes, entre franceses e os povos vindos do norte do continente africano que buscam residência neste país, apenas como exemplos. A visão etnocêntrica caminha na contramão do processo de integração global decorrente da modernização dos meios de comunicação como a internet, pois é sinônimo de estranheza e de falta de tolerância.

Contudo, a inevitabilidade do choque cultural é um fato, pois as culturas naturalmente possuem bases e estruturas diferentes, dando significação à vida de formas distintas. Prova disso estaria no papel social assumido pelas mulheres, que certamente não possuem os mesmos direitos enquanto pessoa humana em sociedades ocidentais e orientais. Este fato, aliás, tem sido objeto de longas discussões internacionais acerca dos direitos humanos e das questões de gênero. A complexidade dessa questão é muito clara, pois se para nós do lado ocidental algumas práticas são contra o direito à vida e à emancipação; para outras culturas essas mesmas práticas devem ser aceitas com naturalidade, pois apenas reproduziriam uma tradição.

Cultura está em constante mudança

Uma cultura não é estática: ela está em constante mudança de acordo com os acontecimentos vividos por seus integrantes. Valores que possuíam força no passado se enfraquecem no novo contexto vivido pelas novas gerações, a depender das novas necessidades que surgem, já que o mundo social também não é estático. Movimentos contraculturais, como o punk ou o rock, são exemplos claros do processo de mudança de valores culturais que algumas sociedades viveram de forma generalizada.

O contato com culturas diferentes também modifica alguns aspectos de nossa cultura. O processo de aculturação, onde uma cultura absorve ou adota certos aspectos de outra a partir do seu convívio, é comum em nossa realidade globalizada, onde temos contato quase perpétuo com culturas de todas as formas e lugares possíveis.

Publicado por: Lucas de Oliveira Rodrigues em Sociologia
Disponível no site: http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/sociologia/conceito-cultura.htm Acessado em 09/03/2016.

Vejamos então.

Por cultura, podemos entender um conjunto de valores, crenças, normas, saberes, fazeres, tradições, produção artística e práticas religiosas criadas pelo homem vivendo em sociedade, que serve para dar sentido a própria existência humana além de servir para identificar um grupo social de outro, uma sociedade de outra.

Seria a cultura um dos elementos diferenciadores dos seres humanos e não sua raça, como quiseram alguns no passado. Por isso mesmo que o termo raça somente é aplicado quando nos referimos a toda a humanidade. Quando no referimos a um grupo com características específicas usamos o termo Etnia.

Então, toda cultura é sempre social e é o resultado das relações travadas por seres humanos com outros seres humanos, de seres humanos com a natureza e de seres humanos com o sobrenatural.

Assim, se temos seres humanos interagindo com outros dentro de um certo espaço por um certo período de tempo teremos a produção de valores, crenças, costumes, ou seja, de cultura. Por isso podemos falar de cultura italiana, brasileira, francesa, negra, indígena, quando nos referimos aos grupos étnicos. Também posso falar de cultura escolar e de cultura organizacional para me referir àqueles valores, crenças, costumes criados dentro de certos espaços, dentro das organizações sociais.

Fonte: ENA Virtual - Curso Ética e Serviço Público.

Como nos Tornamos Aquilo que Somos?

 Depois de constatada uma verdade um tanto óbvia, a de que vivemos em sociedade, vamos verificar como a sociedade atua sobre nós, os indivíduos, para que nos tornemos seres sociais. Afinal de contas, somos seres biológicos e, você gostando ou não, temos uma parte animalesca em nós. No entanto, diferente dos demais animais, nós seres humanos não agimos guiados exclusivamente pelos nossos instintos e desejos. Sendo assim o que nos diferencia dos demais animais com os quais dividimos essa casa chamado planeta Terra?

Assista os vídeos abaixo:




Desde os gregos antigos essas perguntas já eram realizadas: O que aconteceria se um ser humano fosse criado por animais? E se ele não tivesse tido contato com outras pessoas ele desenvolveria todas as habilidades que atribuímos aos seres humanos?

Essas questões deram origem, entre os filósofos gregos, a um campo da Filosofia chamado de Antropologia Filosófica. Esse campo se preocupa com a constituição do ser humano e o que o diferencia dos demais animais que habitam a face da Terra. Ou seja: se somos animais, por que não agimos por instinto o tempo todo?

No século XIX, foi criada uma ciência social chamada Antropologia, cuja função seria analisar o homem a partir da ótica cultural.

Escala da Evolução humana

Na figura abaixo se pode perceber a evolução biológica do homem. Um dos nossos ancestrais mais antigo, um dos primeiros hominídeos a aparecer tem um nome grafado em latim (se bem que todos os nomes científicos dos seres vivos são escritos em latim). Seu nome científico era Australopitecus afarensis (traduzindo quer dizer maçado do sul). Não se trata de um homem, mas de um fóssil de uma mulher. Ela foi chamada de Lucy. Depois vieram o Homo habilis, Homo erectus, Homo sapiens arcaico e, enfim o Homo sapiens sapiens (homem que sabe, sabe que sabe e consegue transmitir aquilo que sabe). Todos os seres humanos que existem hoje descendem desse grupo.



Como pode perceber o homem passou por um processo de evolução biológica ao longo dos últimos cinco milhões de anos. Dessa forma, nós somos o resultado de um processo que ainda está em curso chamado Evolução Humana. Note que o tamanho do nosso cérebro aumentou consideravelmente ao longo desse processo. Isso se deve ao acúmulo de conhecimento e o desenvolvimento da cultura, que também é chamado de Revolução Cognitiva por alguns cientistas. Isso demonstra que os seres humanos não resultam apenas da evolução biológica, mas também de um processo de humanização.

Fonte: ENA Virtual - Ética e Serviço Público.

Sociabilidade e Socialização: A Construção do Indivíduo

 


A socialização é o processo de aprendizagem pelo qual passamos durante toda nossa vida e por meio do qual aprendemos as características do meio em que vivemos.

O mundo social é composto das características culturais e de estruturas sociais, institucionais ou não, que fundamentam e guiam o comportamento daqueles que fazem parte deste mundo. Para que o indivíduo que nasce nesse meio o compreenda, ele deverá aprender os aspectos culturais vigentes dessa sociedade. Esse processo de aprendizagem é chamado de socialização.


Como já sabemos, não nascemos com traços culturais embebidos em nossas mentes. A socialização, enquanto aprendizagem de uma cultura, acontece no convívio diário da criança, que nasce já inserida em uma comunidade que possui formas definidas de compreender sua realidade e de interagir com os demais membros de sua sociedade. Esse processo é responsável por garantir que o novo sujeito social aprenda como se guiar em meio ao mundo de significados que a sua realidade possui, e exercerá grande influência sobre seu comportamento.

Embora se inicie na infância, o processo de socialização não termina na vida adulta. As experiências são diferentes nas várias etapas da vida humana, onde entramos em contato com pessoas diferentes e convivemos com gerações diferentes que, por terem vivido um outro período de tempo e visto que o comportamento e compreensão de mundo se altera no decorrer da vida, possuem formas diferentes de ver o mundo. Esse contato com diferentes gerações garante a continuidade do processo de socialização.

Agentes de socialização

No decorrer da socialização de um indivíduo, ele entrará em contato com um enorme número de contextos e grupos sociais que lhe apresentarão a um grande número de visões significativas (interpretações de contextos) do mundo social.

Anthony Giddens especifica duas etapas do processo de socialização em que diferentes agentes de socialização tomam parte como maior significância:

A primeira fase de socialização se dá na infância e é o período de maior aprendizagem cultural da vida do ser humano, que aprende sua primeira língua e começa a ter seu comportamento moldado pelo convívio social com sua família.

O segundo período acontece na fase mais madura do ser humano, no fim de sua infância e no início de sua vida adulta. Nesse momento, outros agentes passam a ter maior impacto na socialização do sujeito. A escola, os grupos de amigos que vêm de diferentes realidades, a mídia e posteriormente o âmbito do trabalho, trazem consigo uma bagagem de valores, normas e crenças que estão agregadas à realidade social e cultural na qual o indivíduo se insere.

No processo de socialização, os sujeitos se constroem mutuamente.

Indivíduo e socialização

Se o processo de socialização molda o indivíduo de acordo com a realidade que ele vive, isso quer dizer que estamos condenados a fatalmente ser o que essa realidade nos determinou? Felizmente, não. O processo de socialização é construído no meio social, mas não quer dizer que a individualidade do sujeito inexista ou que ela não esteja ligada ao processo. Embora nosso convívio com os diferentes atores do mundo social exerça forte influência na construção do indivíduo social, a liberdade e a individualidade também toma parte na construção de nossa identidade. É a identidade do indivíduo que é parte fundamental da construção da individualidade do sujeito, já que é nela que estão inseridas as particularidades de cada um: nossas prioridades de valores, crenças, orientação sexual, nacionalidade etc.

Fonte: ENA Virtual - Curso: Ética e Serviço Público.

Animalização do Homem: Uma Visão Ontológica do Ser Individual e do Ser Social

 1. Introdução

Rogério Lacaz-Ruiz
Prof. Dr. FZEA/USP
e-mail roglruiz@usp.br

Em dois dias podemos saber tudo de um homem, mas precisamos um pouco mais para conhecer um animal. (Provérbio Persa)
Todo ser age conforme é
(Adágio filosófico medieval)

A animalização do homem é um fenômeno que pode ser abordado de diferentes maneiras. Desde a consideração do homem que é animalizado por realizar atos não humanos até àqueles que são tratados pela sociedade como animais, passando pela animalização na forma de fábulas ou das histórias em quadrinhos. Um outro aspecto que vale a pena considerar é o de abordar os animais com os critérios humanos; projetar atitudes e sentimentos humanos no animal.

Quando o homem livremente se animaliza pelos seus atos é possível considerá-lo como um doente para si e para a sociedade. Neste caso, ele é classificado como um doente e a síndrome que o acomete bem merece um estudo especializado. O homem que é animalizado pela sociedade, o famoso "excluído", merece o resgate de sua dignidade. As fábulas exprimem o sentimento humano de forma atenuada pela fala animal. Algo semelhante aparece nas histórias em quadrinhos. Colocar sentimentos humanos nos animais, seria fazer algo semelhante a um transplante de cabeças.

Em sentido biológico, o homem não é o ser mais valioso da natureza. Se tomamos como critério a forma biológica, a independência do existir, o homem resulta inferior às plantas e aos outros animais. As plantas ocupam o cume da independência dos seres vivos. A nutrição dos animais depende dos organismos vegetais. E dentro do reino animal o homem é o menos independente de todos. Se o valor vital fosse a única medida de valor, seria preciso reconhecer que o homem seria um animal doente.

Sua fraqueza é evidente: seu sentido do olfato é dos mais imperfeitos, sua proteção natural contra o frio é praticamente nula, etc. O homem ao nascer, é a espécie animal doméstica, que carece de muitos cuidados, e por períodos prolongados, quando comparado com os demais mamíferos. Nesta fase, seu choro é praticamente a única forma de comunicação com os outros seres da sua espécie. Os outros animais, são bastante distintos. Logo que nascem, as crias começam a caminhar, e em poucos meses tem os mesmos hábitos, inclusive alimentares, dos pais. As crianças dependem dos pais; enquanto adolescentes, convivem com os pais. A maturidade, as vezes custa a chegar, e a velhice, não tarda.(Guardini, 1990). Mesmo em seus atributos específicos encontramos, por exemplo, que a memória vai se perdendo pela escrita e pelo impresso, que a civilização cria para o homem mais necessidades e doenças do que ele é capaz de satisfazer e curar.

Porém, para suprir sua impotência animal, o homem procede com mais inteligência e prudência que o tigre: o que se teme não é que a espécie desapareça (como seria de esperar do ponto de vista da mera aptidão animal para a sobrevivência), mas que cresça em excesso. Biologicamente o homem continua sendo um animal. Por um lado diminuído e doente, por outro aumentado em sua dignidade. A liberdade não é apenas um privilégio, mas uma prova disto. Podemos subir a escada do espírito, ou descer pela vertente de nossa animalidade frustrada, que definitivamente leva ao nada.

Desde que o homem foi classificado como ser vivo por Aristóteles, ele estava no Reino dos Animais. O mesmo o fizeram os que sucederam nesta tarefa taxionômica: Linnaeus (1735), Haeckel (1866), Copeland (1934) e Whittaker (1969). O homem, se considerado do ponto de vista biológico, é um animal.

2. O conceito de animalização

O dicionário Aurélio recolhe animalizar como sinônimo de tornar bruto, embrutecer, bestializar. A Encyclopedia Diccionario Internacional de W.M. Jackson, Inc. Editores, (Rio de Janeiro), recolhe o verbete animalisar (sic) no seu vol. I: "Reduzir aos instintos, aos appetites, aos gostos do animal; o philosophismo animalisa o homema religião divinisa-o/ por ext. Rebaixar-se, descer ao estado animal: Entregar-se as paixões brutas é, a bem dizer, animalisar-se." Por mais que um ser humano tenha apreço pelos animais, jamais gostaria de ver seus atos classificados como os de um animal. Se um homem pode atingir este estado de animalização, nada mais oportuno que considerar este fenômeno uma "doença". (Naturalmente, o fato recente da gíria "animal!" com valoração positiva é mais um exemplo do conhecido fenômeno - descrito por C. S. Lewis - de inversão da polaridade: o negativo pode significar positivo: o mesmo ocorreu com "tremendo", "formidável", "fantástico" etc.).

3. Questionamentos e comentários

Qual o alcance e o significado dessa triste possibilidade de animalização? Onde fica a liberdade humana? Quais as consequências do ponto de vista individual e social? Um animal diferente é o homem, pois tem a capacidade de se considerar como uma entidade independente, de lembrar o passado e visualizar o futuro, de usar sua razão para compreender e conceber o mundo, indicar objetos e atos por meio de símbolos e valer-se de sua imaginação.

Quanta fragilidade existe no homem! Ao nascer, carece de um protocolo vinculado a sua existência, que regulamente o processo de adaptação ao mundo que o rodeia. Não sabe porque nasce, ou quando vai morrer; custa a saber quem é e o que faz neste mundo. Pascal chega a afirmar que a vida se resume a conhecer quem somos e quem é nosso Criador. O homem enfim é livre e se alegra com este dom; a própria liberdade também é para ele fonte de angústia.

Os animais parecem ser mais livres, despreocupados e senhores de si mesmos. Parecem que estão sempre seguros de seus atos. Se por um lado isto parece ser uma visão antropomórfica (ou mesmo dos seriados televisivos do humor inglês); por outro, os animais tem uma razão para serem assim vistos pelo homem. Sua bagagem instintiva, seu protocolo vinculado a sua existência, é rígido. Todo homem é um animal, mas todo animal não é homem.

No "Prefácio" do livro Ética social e governamental, Lauand (1997) comenta: "Esse drama fundamental ético-existencial do homem transcende o âmbito da filosofia acadêmica e atinge a arte popular: é apresentado até numa recente canção, uma das mais inpiradas páginas de Milton Nascimento, Yauaretê (canção-título do álbum de mesmo nome). Inspirada no conto de mesmo título de autoria de João Guimarães Rosa.

Nesta canção, o homem dialoga com a onça yauaretê (o autor explica que o sufixo -etê, em tupi, significa o máximo, "de verdade", plenitude) pedindo-lhe - a ela que já atingiu o máximo de seu ser-onça: yauar-eté - que lhe ensine o correspondente ser-homem. E aí se retoma todo o problema ético, de Platão a Sartre: o que é verdadeiramente ser homem? Maria, a onça yauaretê, já realizou a plenitude do ser-onça (que se resume na "sina de sangrar") e o poeta, entre perplexo e invejoso, pergunta-lhe: E o que é ser homem? Entre outros versos de profunda sintonia com o pensamento clássico, diz a canção: "Senhora do fogo, Maria, Maria/Onça verdadeira me ensina a ser realmente o que sou (...)/Vem contar o que fui, me mostra meu mundo/Quero ser yauaretê/Meu parente, minha gente, cadê a família onde eu nasci?/Cadê meu começo, cadê meu destino e fim?/ Pra que eu estou aqui? (...)/Dama de fogo, Maria, Maria/Onça de verdade, quero ter a luz (...)/Me diz quem sou, me diz quem foi/Me ensina a viver meu destino/Me mostra meu mundo/Quem era que eu sou?" Que devo fazer para ser homem em plenitude, abaeté? Qual é a areté, a excelência, a virtude específica do humano?"

4. Os animais antropomorfizados

Um antigo conto diz, que no passado os animais falavam; mas perceberam que era melhor calar e assim permanecem até os nossos dias. As fábulas de um Raimundo Lúlio ou de um La Fontaine, sempre foram consideradas como uma forma amena de expressar algo que poderia ser incômodo, caso fosse dito com nome; e sobrenome. Os cartunistas como Bill Waterson e Fernando Gonzales, seguem em suas tiras de jornal, ensinando nas palavras proferidas pelos animais, lições de vida. A antiquíssima tradição crítica das fábulas de animais tem um representante atual na obra prima de Orwell: A revolução dos bichos. Os provérbios - também eles valem-se dos animais - são outra fonte inesgotável de resgate da personalidade humana. O conhecido "Cão que ladra não morde" pode significar que este cão, que está latindo tanto, não morde, mas principalmente alude às pessoas que ameaçam muito e não fazem.

Também as piadas - que quando forem contadas para ganhar mais graça podem ser anunciadas como uma história - mostram o binômio homem-animal de forma lúdica. Vale o exemplo do engenheiro de estradas que após vários dias de medição para fazer o melhor traçado de uma rodovia, foi abordado por um camponês, que perguntou. - Doutor, por quê o senhor está há tantos dias a medir este morro. O engenheiro explicou em linguagem simples a importância das curvas de nível. O homem do campo retrucou: - Mas para isto nós usamos o jumento, que é tão cuidadoso, e por onde ele passa, colocamos uma estaca e então fazemos a estrada. O doutor não gostou muito, e em tom de desaforo retrucou: - É meu caro, e o que vocês fazem quando não tem o jumento? - Chamamos um engenheiro...!

Todos os exemplos citados, tiram o equilíbrio ou a máscara dos seres humanos. A ironia, a farsa, a hipocrisia, a inveja, a fuga de si mesmo, estão nos ensinamentos dos animais antropomorfizados. A figura do Coelho com um despertador na mão, na obra Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol, retrata bem aqueles que sempre dizem "tenho pressa", que não tem tempo para pensar, e ainda chegam atrasados!

E os animais seguem seu destino, seu rumo, seu caminho, seu norte; seguros, pois tem um instinto que os torna previsíveis e passíveis de estudo. Quanto mais complexo e rígido for o equipamento instintivo dos animais, menor será sua capacidade de aprendizagem e menos desenvolvido será seu cérebro. O que torna os animais seguros, aos nossos olhos, é seu rígido instinto. Os estudos do ser humano, começam pela filosofia e abarcam uma série de ciências: a antropologia, a sociologia, a psicologia, e cada uma delas com tantas ramificações e escolas. É difícil descrever o ser humano com a mesma clareza contida num manual de biologia.

A razão, a benção do homem, também é a sua maldição; ela o força a resolver incessantemente a sua insolúvel dicotomia. A existência humana, nisto difere da de todos os outros organismos; acha-se em um estado de desequilíbrio constante e inevitável. Ele não pode voltar ao estado pré-humano de harmonia com a natureza; tem que prosseguir para desenvolver sua razão até que se torne senhor da natureza de si mesmo.

Na literatura brasileira, em Vidas Secas de Graciliano Ramos, podemos ver aonde chega o pensamento humano do poeta e escritor. Massaud Moisés (1997) analisa o binômio homem-animal, dentro de uma situação de penúria, infra humana: "A tendência à introspecção é outro aspecto desta originalidade. O narrador lança mão de frequentes monólogos interiores para suprir a falta de comunicação entre os retirantes e para lhes evidenciar a indigência verbal. O foco localiza-se mais na sua vida íntima que nas suas ações, ou porque irrelevantes, ou porque revelam monotonia de vidas sem desígnio, vergadas ao fatalismo do meio e ao arbítrio de homens despóticos. E quando esboçam alguma reação, logo se embrenham no cipoal das suas elucubrações. Nem mesmo as crianças escapam dessa fuga interior; a própria cachorra parece dotada de pensamentos. "Será que há mesmo alma em cachorro?", indaga Fabiano. Em suma, Graciliano procurava "estudar o interior de uma cachorra" como confessa nas Cartas (1988, p.194-5). O pendor para a devassa psicológica, que lhe caracteriza a ficção, está patente em Vidas Secas, apesar de toda a aparência contrária. A humanização da cachorra e do papagaio, assim como a animalização dos flagelados, já anotada pela crítica, é decorrência imediata." (Moisés, 1997) Neste contínuo ir e vir do homem e dos animais onde uma vida seca é uma vida infra-humana, há confusão do homem com o animal. Alguém "sem desígnio" é rebaixado a um animal, e o animal "fiel" nesta caminhada é humanizado.

Até há pouco tempo, a antropologia considerava o ser humano na simples condição de animal. E não temos dúvida de que o homem é também um animal. Sua morfofisiologia manifesta este fato de maneira inequívoca. Portanto, o lógico é aceitar a situação e não acreditar que somos algo assim como espécies de espíritos angélicos forçados a viver com uma certa roupagem corporal. Mas também é igualmente certo que por mais animais que sejamos, a coisa não chega a tanto que resulte inevitável o pessimismo de ter que abdicar, "humildemente" de nossa categoria de pessoas. Por isso, diante da abusiva solidariedade que alguns mostram com os animais, pode ser oportuno lembrar da estória do diálogo entre o pessimista e o filósofo. Aquele disse - Não somos ninguém. Isto foi suficiente para que o segundo retrucasse: - Especialmente você, meu caro...

A história dos esforços que foram feitos para animalizar o ser humano, tem como pano de fundo algo insuspeitavelmente irônico e divertido. Descobriu-se, há pouco, a nova antropologia (1).

De fato, ela pôde comprovar que o método que vinha sendo utilizado para estudar de forma neutra e objetiva ao homem e ao animal, não era tão neutra e objetiva como se havia proclamado. Pelo contrário, este método estava saturado de ideias e noções bem significativas e expressivas da existência humana. Certamente os antigos antropólogos souberam evitar a noção de espírito e de outras que resultavam, no mínimo, suspeitas. Por este ângulo não há nenhuma objeção. Mas em troca, foram demasiadamente favoráveis a vida dos animais, atribuindo a eles um tipo de ordenamento social, sanções, hierarquia e ritual e outros conceitos parecidos. Daí resulta que a simplicidade do método empregado foi apenas aparente, e que portanto, o que se vinha fazendo era um círculo vicioso: para explicar o ser humano com os modelos da vida animal, se começava por introduzir nestas categorias correspondentes a vida do homem.

A antropologia deste século, voltou a encontrar o homem, tirando-o do zoológico onde o haviam colocado cientificamente no século passado. Recuperou simplesmente a presumível animalização do ser humano, que não havia sido outra coisa além de uma humanização do animal. Ao estudar o ritual dos animais e se tentar tirar algumas conclusões do comportamento humano, estas podem ser muito interessantes se não se perde o ponto de vista, de que o que se faz é aplicar ao comportamento animal a ideia que o ritual já tem o homem a partir da religião e dos costumes sociais; isto é que já partimos de uma noção humana.

5. Homens animalizados

Animalizar, é colocar o homem nesta galeria pré-humana, que na realidade nunca existiu. As comparações, quando envolvem seres humanos, costumam ser deletérias para o convívio social. Se alguém infelizmente já presenciou o início de uma inimizade entre duas pessoas, pode reparar que esta começou com uma maledicente comparação; e quem fala mal dos outros, fala mal de si mesmo. Mas quando se compara o homem a um animal, quer dizer que ele se animalizou.

Vale lembrar que o homem tem a razão predominando sobre o instinto, e o animal só o instinto. Se o animal faz algo, o faz por instinto, mas se o homem deixa de usar a razão, como seu instinto é rudimentar, ele faz algo que não é próprio do homem. Animalizar é um eufemismo, pois infelizmente ele reduziu seu atuar a um reflexo, com algo que tem de mais precário: seus instintos.

6. Considerações finais

A personalidade individual do homem é embasada nas particularidades da existência humana, comum a todos os homens. Como dizíamos, a debilidade biológica do homem é evidente. E quando o homem deixa de raciocinar e não usufrui de sua inteligência, ele passa a equiparar-se aos animais, voltando a um nível inferior de desenvolvimento, tendo suas reações baseadas apenas em instintos; que são escassos.

A vontade, a inclinação humana, tem por objeto formal o bem. Só acidentalmente quer o mal; porque o seu entendimento o capta erroneamente como bem. O violento ("animal") se opõe à natureza humana. No sentido mais amplo, cabe chamar a vontade de natureza, uma vez que ela é uma inclinação natural e não uma necessidade de coação.

Querer a felicidade própria gera uma amplíssima margem de indeterminação pois são muitas as vias que a ela podem (ou parecem...) conduzir. Caracteriza o homem a vocação natural para o bem. A partir do momento em que o homem não raciocina e interpreta o mal como bem, mesmo sob o efeito de uma coação, e.g. uma pressão social; equipara-se assim o homem ao animal, pois este, não discerne entre o bem e o mal. Um predador não é capaz de compreender o mal que faz a sua presa. Quando o homem se animaliza e agride alguém, pensa somente em seu bem particular, não tendo noção do mal que causou à sua vítima (e, ao contrário do caso do jaguaretê, a si mesmo...).

Em contraste com o animal, o homem é um eterno insatisfeito; anseia pelo poder, amor ou destruição; arrisca sua vida por ideais religiosos, políticos ou humanistas. São justamente estes ideais que caracterizam a vida humana. Caracteriza o homem a noção de bem comum (2). O animal, mesmo que adaptado à vida em grupo, visa apenas sua sobrevivência, mesmo que tenha que aplicar um mal a outro ser - segundo o juízo humano -, tanto de sua como de outra espécie. O homem se animaliza a partir do momento em que vive apenas o bem particular, esquece que faz parte da sociedade e se torna um egoísta, mesmo que isto signifique um mal para os outros (e, portanto, para si mesmo...).

O homem, para não ser rebanho, massa, precisa preocupar-se dela, servindo-lhe de pastor, fermento. Não há alternativa ou se é levedura ou massa, ou pastor ou rebanho. Non ducor duco!. Cada um, atuando na sociedade e para a sociedade, vivendo a cidadania, demonstrarão a personalidade que cada um possui. O homem, quando não possui um ideal próprio, está se massificando. É como o animal que vive em grupo e apenas aceita, sem contestar o papel ao qual está acostumado a desempenhar. Ou seja, deixar-se levar pela corrente é massificar-se (3).

O homem, diziam os antigos, é fundamentalmente um ser que esquece. (Lauand, 1994) Esquece da sua dignidade como pessoa humana (4). Deixa-se levar pelas tendências da maioria, e quando menos se espera, acaba como um animal de um rebanho. O homem se aproxima do animal a partir do momento em que esquece a sua dignidade, seus valores, sua personalidade e se subjuga à uma situação onde sofra de alguma forma um dano físico, moral ou seja impedido em sua liberdade.

Ao libertar-se parcialmente das leis biológicas e físico-químicas, nascem nele aspirações à verdade, ao bem e a beleza. Como antes, olha para o universo, mas agora o contempla e o teoriza. Coloca seu juízo, sua vontade, seu agir ao serviço de um comportamento que sua razão lhe mostra como harmônico, reto e ordenado. E quando não age assim, atraiçoa e fere sua dignidade. No campo dos valores, da axiologia do ser humano, se não for potencializada pela ontologia, não tem nenhum fundamento.


  1. Alguns conceitos clássicos aqui abordados, foram recolhidos do ensaio El hombre y la sociedad, de Antonio Millan Puelles.
  2. O bem comum é o bem da sociedade porque beneficia a todos e a cada um dos membros de que esta sociedade está composta. Pelo contrário, o que beneficia a um só homem, ou a um grupo ou conjunto de homens que não são todos os que na sociedade se integram, é meramente um bem particular, mesmo no caso em que este bem seja lícito do ponto de vista moral. A exata compreensão do bem comum não pode ser meramente negativa. Mesmo que este bem leve consigo algumas limitações que a convivência implica. Para o homem é um bem poder dispor de meios para manter e fazer sua vida, não só no que concerne às necessidades materiais e sim também à sua natureza de pessoa. Mas quando alguém possui um bem particular em detrimento dos demais, deve ser sancionado. Todos devem ter bens particulares de modo que a ninguém seja permitido prejudicar ninguém.
  3. Um bom exemplo de massificação foi o que ocorreu na Segunda Guerra Mundial. Apenas um homem, Adolph Hitler, conseguiu implantar suas idéias radicais e racistas em milhões de pessoas, causando um dos maiores e devastadores conflitos mundiais.
  4. A dignidade da pessoa humana é compatível com a existência da autoridade, mas não com o abuso do poder. O que revela que a categoria própria do homem - a que se afirma quando proclama a sua dignidade - se expressa pela diferença que este tem com os seres carentes de racionalidade e liberdade: uma diferença que se reconhece em todo homem, e não só naqueles que detém o poder ou algo semelhante. Tudo isso é completamente lógico e se funda, de modo visível no conceito de natureza humana, que nos distingue dos animais, ao mesmo tempo em que dá a todos os homens uma profunda e essencial identidade, a que tem que atender às diferenças que entre nós existem. Contudo, o homem não deve ser individualista e refugiar-se apenas no seu bem particular. A dignidade da pessoa humana se pode definir como a faculdade que existe no ser humano, de exercer a livre iniciativa na vida pública. Isolar-se no bem particular é abdicar da categoria própria do homem. Aqueles que abandonam seus autênticos direitos se tornam escravos voluntários.

7. Referências

Referências Bibliográficas

  • Copeland, H.F. The kingdons of organisms, Quart. Rev. Biol., v.13, p.383-420, 1934.
  • Guardini, R. As idades da vida. São Paulo : Quadrante. 1990, p.83-93.
  • Haeckel, E. Generelle Morfologie de Organismem. Reimer : Berlin. 1866.
  • Lauand, L.J. Os fundamentos da ética. In: Horta, S.R.G.(org.) Ética & Realidade Humana. São Paulo : Edix, 1994. p.1.
  • Lauand, L.J. Justiça hoje, na perspectiva da Ética Clássica. In:______. Interfaces. São Paulo : Mandruvá, 1997. p.44.
  • Linnaeus, C. Systema naturae sive regna tria naturae systematice proposita per classes, ordines, genera et species. Haak : Lerder, 1735.
  • Moisés, M. "Vidas secas": o mundo coberto de penas. Jornal da Tarde, 29 de março de 1997. URL: http://www.jt.com.br/noticias/97-03-29/sa3.htm em 5 de maio de 1998.
  • Whittaker, R.H. New concepts of kingdoms of organisms. Science, v.163, p.150-160, 1969

Fonte: ENA Virtual - Curso: Ética e Serviço Público.

O Que é Sociedade?

 O que realmente é a "sociedade"

O ser humano nasce em um ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que essa combinação de esforços individuais.

A sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.

É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo o que deve ser considerado como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do indivíduo ou vice-versa. Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou relativo à sociedade é a orientação específica das ações individuais. A categoria fim só tem sentido quando referida à ação.

A teologia e a metafísica da história podem discutir os fins da sociedade e os desígnios que Deus pretende realizar no que concerne à sociedade, da mesma maneira que discutem a razão de ser de todas as outras partes do universo. Para a ciência, que é inseparável da razão — instrumento evidentemente inadequado para tratar de problemas desse tipo —, seria inútil envolver-se em especulações desta natureza. Por Ludwig von Mises, segunda-feira, 16 de dezembro de 2013.


Sociedade é ação concertada, cooperação

A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade. Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços. Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.

No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências. Elevam a espécie animal homem às alturas de uma existência realmente humana; são o mais precioso adorno da vida. Entretanto, esses sentimentos são fruto da cooperação social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações sociais e não são as sementes de onde estas germinam.

Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem em um ser humano, é o fato de que o trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade. Não fosse por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos. Nenhum sentimento de simpatia poderia florescer em tais condições.

Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na sociedade é uma "consciência da espécie". Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não houvesse um "senso de comunidade ou de propriedade comum". Podemos concordar, desde que estes termos um pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais colaboradores na luta pela sobrevivência, pois são capazes de reconhecer os benefícios mútuos da cooperação, ao passo que os animais não têm essa faculdade.

Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência. Em um mundo hipotético, no qual a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.

O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos da transformação cósmica e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu campo de investigação.

Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer organismo vivo. Mais ainda: existem, no reino animal, colônias integradas por seres que colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas, costumam ser chamadas, metaforicamente, de "sociedades animais". Mas não devemos jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço consciente para a realização de fins.

Nenhum elemento desse gênero está presente, ao que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e espiritual. É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a evolução cósmica: a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.

Como em todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.

A cooperação humana

A cooperação humana é diferente das atividades que ocorreram sob as condições pré-humanas no reino animal e daquelas que ocorriam entre pessoas ou grupos isolados durante as eras primitivas. A faculdade humana específica que distingue o homem do animal é a cooperação. Os homens cooperam. Isso significa que, em suas atividades, eles preveem que as atividades incorridas por outras pessoas irão produzir certas coisas que possibilitarão os resultados que eles objetivam com seu próprio trabalho.

O mercado é uma situação, ou um conjunto de situações, em que eu dou algo para você a fim de receber em troca algo de você. Um ditado em latim, há mais de 2.000 anos, já apresentava a melhor descrição do mercado: do ut des — dou algo para que assim você também dê. Eu contribuo com algo de modo que você contribua com algo mais. Com base nisso desenvolveu-se a sociedade humana, o mercado, a cooperação pacífica entre os indivíduos. E cooperação social significa divisão do trabalho.

Os vários membros, os vários indivíduos de uma sociedade não vivem suas próprias vidas sem qualquer ligação ou conexão com outros indivíduos. Graças à divisão do trabalho, estamos constantemente associados a terceiros: trabalhando para eles e recebendo e consumindo o que eles produziram para nós. Como resultado, temos uma economia baseada nas trocas e que consiste totalmente na cooperação entre vários indivíduos. Todo mundo produz, não apenas para si próprio, mas para outras pessoas também, na expectativa de que essas outras pessoas irão produzir para ele. Esse sistema requer atos de troca.

A cooperação pacífica, as conquistas pacíficas dos homens, são todas efetuadas e realizadas no mercado. Cooperação necessariamente significa que as pessoas estão trocando serviços e bens, sendo estes últimos os produtos dos serviços. São essas trocas que criam o mercado. O mercado representa precisamente a liberdade de as pessoas produzirem, consumirem e determinarem o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual qualidade e para quem esses produtos devem ir. Um sistema livre sem um mercado é impossível. O mercado é a representação prática desse sistema livre.

Tem-se aquela ideia de que as instituições criadas pelo homem são (1) o mercado, que é a livre troca entre indivíduos, e (2) o governo, uma instituição que, na mente de muitas pessoas, é algo superior ao mercado e poderia existir na ausência do mercado. A verdade é que o governo — que representa necessariamente o recurso à violência, pois não passa de um poder policial com seu correspondente aparato de compulsão e coerção — não pode produzir nada. Tudo que é produzido de bom é produzido somente pelas atividades desempenhadas por indivíduos, e é disponibilizado no mercado com o intuito de se receber algo benéfico em troca.

É importante lembrar que tudo o que é feito, tudo que o homem já fez, tudo que a sociedade já fez, é o resultado da cooperação e dos acordos voluntários. A cooperação social entre os homens — e isso significa o mercado — é o que cria a civilização. E foi essa cooperação que permitiu todas as melhorias ocorridas nas condições humanas, melhorias essas que podemos usufruir hoje.

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia11 ("A palavra praxeologia (do grego praxis, ação, hábito, prática e logia, conhecimento, ciência, teoria). Praxeologia é o estudo dos fatores que levam as pessoas a atingir seus propósitos. Portanto, trata-se da ciência ou a teoria geral da ação humana)".

Se a vida em sociedade necessita de acordos e de regras para que ela própria possa se dar e se não nascemos sabendo nem desses acordos, nem dessas regras como nos tornamos seres sociais?

Não teria sido essa necessidade de cooperação que levou o homem a constituir a sociedade e agir para que ela permanecesse?

Vivendo em grupo não seria mais fácil garantir alimento para o grupo? Não seria mais fácil garantir a proteção o grupo?

Isso quer dizer que o homem é um animal gregário, ou seja ele vive com outras pessoas. Ele forma grupos.

Vamos esquematizar um pouco:



Segundo o sociólogo alemão Max Weber, a unidade básica de constituição da sociedade é o indivíduo. Poderíamos afirmar que a coexistência dos indivíduos por um tempo longo ou curto geram os grupos sociais. Dessa coexistência surgem as interações sociais como a cooperação, a competição, o conflito, a comunicação (representado no esquema pelas setas). Quanto mais prolongada for essa coexistência, as interações sociais vão se cristalizando em normas, regras, dando origem às instituições sociais. Assim, podemos dizer que a sociedade é o conjunto de grupos sociais, instituições sociais e indivíduos de um mesmo local, que estão em constante interação entre si.

Mas o que garante que o individuo se veja como integrante desse ou daquele grupo social ou sociedade? E as regras e normas como as incorporamos? Como ocorre a passagem de seres individuais para seres sociais?

Fonte: ENA Virtual - Curso: Ética e Serviço Público.

Política, Para Não Ser um Idiota - Mário Sérgio Cortela

 Leia com atenção as perguntas abaixo:

  • É você que produz sozinho alimento que consome?
  • É você que ensina seus filhos os conhecimentos científicos dentro dos padrões socialmente estabelecidos?
  • É você que produz o combustível que vai ser usado no seu carro?
  • Você já nasceu sabendo tudo o que sabe hoje? Alguém nasce católico ou evangélico?
  • O Estado sempre existiu?

Se a resposta foi negativa para todas essas perguntas e se, como eu, você está na condição de agente público concursado ou não, presta algum serviço a uma infinidade de pessoas, preciso lhe dizer que isso somente é possível pois você, eu, nós, vivemos em uma sociedade.

Em outras palavras, você, eu, nós vivemos num ambiente onde existe certo grau de interdependência entre as pessoas. Nós não só vivemos em sociedade, nós convivemos com outras pessoas.

Acredito que você já tenha travado contato de alguma forma com o Filósofo e Professor Mario Sérgio Cortela. Ele e o ex-ministro da Educação, também Filósofo, Renato Janine Ribeiro, dialogam sobre a sociedade no livro Política, para não ser um idiota. Leia o trecho:

Cortella – A proibição visa evitar que não fumantes sejam constrangidos pelos fumantes.

Janine – Mas há gente que questiona: “A lei pode me impedir de fazer mal a mim? Pode determinar que eu não fume porque isso fará mal a minha saúde?”. Ora, sinto vontade de responder: “Mas quem disse que você escolheu tão livremente fumar? Quem disse que não houve uma propaganda maciça para levar você a escolher fumar (ou a escolher comida gostosa, escolher engordar)? Que liberdade é essa? Você tem razão, Mário, quando afirma que somos alvo de n constrangimentos”. Por isso, penso que a resposta ideal à sua pergunta poderia ser: A política seria uma maneira de lançarmos luz sobre essas teias invisíveis que nos dominam e tentarmos controlá-las.

Cortella – A política é vista ai como convivência coletiva mesmo. Quando se poderia imaginar que o conjunto da sociedade aceitaria a interdição do uso do tabaco em determinados espaços? Ou mesmo a limitação do uso de carros particulares em algumas cidades em dias e horários específicos, ou ainda de fazer ruído a partir de determinada hora, mesmo que moremos cada um em sua própria domus, ou seja, em sua casa? Mas a questão é que não temos domus, só temos con-domínios. Viver é conviver, seja na cidade, ainda que me casa ou prédio, seja no país, seja no planeta. A vida humana é condomínio. E só existe política como capacidade de convivência exatamente em razão do condomínio. Daí o indivíduo pergunta: “Mas e meu direito de sair com meu carro quando quiser, ou de fazer ruído até a hora que eu desejar?”

Outro dia, eu voltava de Campinas para São Paulo pela rodovia dos Bandeirantes, e na frente havia um caminhão-baú, desses fechados e grandes, ostentando, na traseira, aquela frase obrigatória para algumas empresas: “Como estou dirigindo?. Mas ele deu sequência à frase, assim: “Como estou dirigindo? Mal? Dane-se, o caminhão é meu”. Essa lógica “do caminhão é meu” significa “eu faço o que quero, sou livre”. Ora, esse exercício da liberdade como soberania é algo que se aproxima da ideia da idiótes. Não sou soberano. Entretanto o indivíduo afirma: “Eu sou soberano sobre mim mesmo”.

Mas ser soberano sobre si mesmo não é política. Ou será que é?

CORTELLA, Mário Ségio; RIBEIRO, Renato Janine. Política: Para não ser idiota. Campinas, São Paulo: 2015.


Creio que até aqui já tenha ficado claro duas coisas: a primeira, que o homem não consegue levar a vida que leva atualmente sem a sociedade lhe dando suporte; e a segunda é que não existe sociedade sem regras, normas. Elas são interdependentes.

O próximo texto vai permitir entender melhor porque o homem vive em sociedade e que vantagens são obtidas a partir dessa “escolha”. 

Fonte: ENA Virtual - Curso: Ética e Serviço Público.